O painel “Calvário de Cristo hoje” e algumas considerações de um cristão

Alex AmorimAlex Amorim Vaz é esperantinense, cristão, católico. Bacharel em Direito. Atualmente é servidor público (Oficial de Justiça e Avaliador no Tribunal de Justiça/PI).

Este não é um texto jurídico sobre o tombamento do painel “Calvário de Cristo hoje”. Recomendo a leitura dos textos de Roque Neto, Genoveva Amorim e do Macelino Keliton que indicam os motivos para o tombamento. São pessoas que possuem amplo conhecimento científico e religioso sobre o painel da Igreja Matriz de Esperantina.

Pelas minhas breves leituras sobre o tema, o painel atende os requisitos mínimos da legislação brasileira para ser tombado. Percebo que tombamento é mais uma discussão política e cultural do que uma discussão jurídica. Aguardemos, então, a decisão final do órgão administrativo ao qual foi apresentada a solicitação de tombamento.

Existem inúmeros painéis, crucifixos, imagens de santos católicos tombados no Brasil. É algo comum. A própria Igreja entende que existem obras sacras que vão além da importância religiosa. É o caso do painel, uma obra sacra singular, repleta de detalhes e que impressiona pelo tamanho. Temos ali uma obra extremamente elaborada.

Sou um defensor da permanência do painel. E a defendo não só pelo aspecto cultural e histórico, que bastam para o Estado tombar. Defendo a permanência em razão da importância religiosa do painel para os católicos. Ocorre que é na questão religiosa onde reside a maioria das críticas à continuidade do painel.

Inicio a defesa do painel dizendo que o painel incomoda. Isso é ótimo. Por isso mesmo ele deve ficar. Jesus Cristo incomodou! Por isso foi crucificado! Ainda hoje incomoda! E Cristo vai incomodar até o fim do mundo. “Passarão o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão”.

Em várias de suas pregações, Cristo incomodava desde as pessoas comuns até os detentores do poder político e religioso. Cristo criticava quem maltratava e explorava o próximo. Disse que atos bons ou ruins que fizéssemos ao próximo seriam como se estivéssemos fazendo ao próprio Deus. “Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes”.

Jesus denunciava as mazelas e corrupções que existiam no meio social. Atacava os religiosos hipócritas. “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus”.

Cristo não veio apenas para rezar. Rezar é algo imprescindível em nossa vida de cristão. Mas a fé sem obras é falha. “Assim também a fé: se não tiver obras, é morta em si mesma”. Cristo veio para servir como o professor Macelino comentou no texto “O Painel veio para Servir”. Servir ao próximo é colocar em prática o amor!

Qual a maior prova de amor segundo Jesus? E para servir, geralmente, é necessário incomodar quem faz mal ou não se importa com o mal a sua volta.

Jesus criticava aqueles que sustentavam o sistema político que oprimia a população. Falava de um novo Reino.

Lideres políticos e religiosos ficaram incomodados. Tinham Jesus como um problema. Cristo poderia ter evitado a cruz, poderia ter calado. Mas ele não calou e continuou incomodando Herodes, Caifás. Foi morto e ressuscitou.

Ao chegar à igreja matriz de Esperantina e observar o painel, o normal é que a pessoa fique incomodada. Estão ali muitas das dores e sofrimentos do mundo! Muitas vezes esquecemos de servir ao próximo, por isso é  bom ser incomodado. O painel ao incomodar faz o convite para que o cristão pense, reze e faça o bem.

Jesus de Nazaré teve uma vida humilde. Viveu e viu as misérias e necessidades do povo. Sabia que a maior miséria era a falta de Deus. A verdadeira felicidade e paz estão no amor a Deus, no amor ao próximo e no amor próprio. Como cristão sabemos que Deus está no próximo. Negar ou tentar esquecer que existem irmãos sofrendo no mundo é negar o próprio cristianismo. “Se alguém quer vir após mim, renegue-se a si mesmo, tome cada dia a sua cruz e siga-me”.

Não entendo um cristão que não quer ser incomodado num templo religioso com as cruzes do mundo. O cristão deve ir para igreja em busca de uma fuga? A igreja é um local de fuga da realidade? Cristo ignorou a realidade e queria fugir? Ou cristo rezava pedindo forças para fazer a vontade do Pai? “Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice! Todavia não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres”.

Um cristão deve pedir a eliminação do painel, ou aceitar o convite a pensar, rezar e procurar meios de mudar a realidade? O cristão tem que servir! Ajudar o próximo! E qual a vontade do Pai?  “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”!

Uma das capelas mais famosas do Vaticano é a Capela Sistina. É nela que ocorre a votação dos novos papas. Facilmente obtemos imagens dela na internet (felizmente, pois, nem todo cristão tem condições de conhecer a Europa). Atrás do altar da Capela Sistina temos uma das mais belas e conhecidas obras sacras, a pintura (afresco) “Juízo final”. É uma pintura polêmica! É outra pintura sacra que incomoda. Desde que foi feita no século XVI, inúmeras pessoas tentaram retirá-la ou censurá-la. Atualmente está exposta de maneira pura, sem nenhuma restrição.

No afresco “Juizo Final”, Jesus está julgando os justos e os injustos. Os injustos estão do lado esquerdo e estão sendo condenados ao inferno. Vi pessoas dizendo que o painel de Esperantina afronta a Igreja, pois, a pintura tira a paz da igreja matriz de Esperantina e das pessoas ao apresentar o próprio Inferno na terra. Pois acreditem! Numa importante capela do Vaticano, temos uma pintura por trás do altar que mostra sofrimento e dor.

Pecadores e sofrimentos numa imagem atrás do altar! Isso não ocorre só em Esperantina, mas também no Vaticano. E retratando um momento que inquieta qualquer cristão. Qual momento mais desesperador do que a condenação ao inferno? O “Juízo final” tem sua importância histórica e cultural, mas se não tivesse importância religiosa não estaria ali. E sim, incomoda.

Um dos detalhes que mais gosto do painel está na inscrição em português do tradicional “INRI” (na placa sobre a cabeça de Jesus). No painel temos “JNRJ”, que significa Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus. Quando eu era criança, após uma missa, uma pessoa me explicou o significado daquelas letras e nunca mais esqueci. Assim, quando eu vejo os crucifixos que tem o “INRI”, já sei o significado mesmo com pouco conhecimento em latim. A maioria dos cristãos não sabe o básico de latim. Bem mais simples e compreensível o “JNRJ”. Cristianismo tem que ser acessível.

Dizem que o painel é ultrapassado. Que não espelha Esperantina nem de ontem e nem de hoje. Será mesmo? Mudaram algumas formas de opressão e violência. Mas, elas continuam existindo. É uma pintura atual. Basta ver, perceber e analisar o que está ali. A pintura apenas aponta realidades. A pintura não é a transcrição perfeita da realidade da década de 1980. Ela apenas indica pontos daquela realidade, assim, como indica pontos para nossa realidade atual. Temos que entender a realidade que vivemos, não podemos ser alienados e alheios. Cristo conhecia a realidade em que vivia. Conhecia os pobres, os fariseu e os reis da época.

É inegável a importância do painel para formação religiosa dos católicos de Esperantina. Quando um cristão tem o primeiro contato com o painel, ele cria sua própria visão da pintura. Em especial as inúmeras crianças que cresceram olhando o painel. À medida que vamos crescendo nossa forma de ver a realidade e a pintura vai mudando. Será que alguma criança, adulto ou idoso já quis eliminar alguma dor que viu no painel, e por isso, agiu na própria realidade fazendo do mundo um lugar melhor? Será que alguém olhando para aquelas dores já rezou para que elas diminuíssem no mundo? A oração e a ação são importantes para o cristianismo. Será que alguém viu algo no painel e lembrou-se da sua própria realidade? Creio que sim. Não eliminemos o painel totalmente! Não encubramos partes tristes do painel! Não alteremos partes do painel para retirar as coisas ruins ali mostradas. É melhor eliminarmos as dores na nossa realidade em nossa volta. Assim teremos paz.

O padre que idealizou a pintura já foi embora há tempos de Esperantina. As interpretações iniciais do painel já passaram, já mudaram. O que importa é que desde a sua inauguração o painel tem uma importância religiosa. O painel também passará, mas lutemos para que ele continue o máximo de tempo incomodando os cristãos. Que venham novas análises e reflexões sobre o painel. Que mais crianças cresçam olhando para o painel e que Deus toque-as para que reflitam e sejam pessoas melhores.

Queria terminar meu texto falando do olhar do cristo retratado no painel. “Minha alma está triste até a morte, ficai aqui e vigiai comigo”. Revelo que hoje em dia o olhar de Cristo é a parte da pintura que mais me deixa incomodado (e gosto disso). É um olhar distante, reflexivo e triste. O que Cristo estaria pensando quando estava na cruz? O que Cristo está pensando agora de nossa realidade? Cristo quer que esqueçamos as cruzes ou quer que rezemos e enfrentemos as cruzes? O que é servir o próximo? O que é a paz?

“Alea jacta est”? A sorte está lançada? Não concordo. Somos cristãos e não acreditamos em sorte ou azar. Preferimos dizer “meu Senhor, seja feita a tua vontade, assim na terra na terra como no céu”.

6 Comentários
  1. ana tontini diz

    Alex, parabéns pelo artigo.Fico feliz de ver um jovem tão por dentro da realidade dos empobrecidos. Tenho esperança que nosso painel seja preservado para o bem dos verdadeiros cristãos.Cheguei em Esperantina no ano que João batista pintou este painel.É nossa história é Jesus crucificado hoje.Obrigada,Alex

  2. ana tontini diz

    Alex, parabéns pelo artigo.Fico feliz de ver um jovem tão por dentro da realidade dos empobrecidos. Tenho esperança que nosso painel seja preservado para o bem dos verdadeiros cristãos.Cheguei em Esperantina no ano que João batista pintou este painel.É nossa história é Jesus crucificado hoje.Obrigada,Alex

  3. George nogueira diz

    Amigos, não irei discutir o sexo dos anjos, sou Médico/Anestesista, e como relatei anteriormente, vi o painel ser pintado, tenho 50 anos, a conotação dada ao painel anteriormente era de ódio, a igreja católica permitiu a um padre, que depois mostrou quais suas intenções reais, aproveitamento político e confronto, lembra- me o Lula, sou a favor do tombemto do painel, puramente, pela preservação da Arte, amo Esperantina, tenho carinho enorme por todos que moram nesta terra abençoada, queria ter a sorte de viver aí. abra co a todos.

  4. Socorro Costa Carvalho diz

    Parabéns, Alex! Vc expressou exatamente o que eu penso. O painel representa conquistas na nossa sociedade nos anos 80, quando foi pintado! O painel representa o sacrifício de Cristo por seus filhos, num mundo de ódio, violência e desigualdades. Vejo hoje a história se repetindo e tentativa de se apagar nossa história de enfrentamento em prol das conquistas sociais e políticas. Eu, como você, que cresci olhando esse painel, assistindo as missas nesta igreja, podia compreender cada detalhe da pintura e jamais me constrangi com ela, ao contrario. Graças, em boa desta, a esta mensagem, podemos ser os jovens conscientizados de hoje! Já imaginou se um padre novo chega na cátedra de Koln, na Alemanha, e resolve pintar suas paredes de branco? Ainda bem que ela já tem status de patrimônio mundial da Unesco (felizmente tive a oportunidade de visita-lá), e não poderá ser alterada por interesses mesquinhos!
    Mais uma vez, parabéns meu amigo!

  5. Ladislau João da Silva diz

    Caro Alex,
    Sua reflexão sobre o nosso painel do ” CALVÁRIO DE CRISTO HOJE” foi muito profunda .Você mostrou uma fé comprometida.Parabéns!Permaneça fiel e ofereça sempre sua juventude em favor dos empobrecidos.Abraço!

  6. João Batista diz

    Prezado Alex Amorim.
    Parabens pelo seu depoimeto!
    Me emociono por ter a certeza de que tem sempre alguem que vê a cultura com outros olhos….
    Muito obrigado por nos ajudar fortalecendo esta luta que é de todos.
    Quando fiz essa pintura era apenas um menino…..
    A dimensão e a importancia a que esta obra chegou pouquissimos esperantinenses sabem; talvez muito poucos! Estou feliz pela sensibilidade de todos que defendem a preservação da obra.
    Cordialmente:
    João Batista Bezerra da Cruz
    Artista plástico
    autor da obra ” Calvário hoje”

Deixe uma resposta

Seu endereço de email não será publicado.